VIS-À-VIS COLOCA AS IDEOLOGIAS E VIVÊNCIAS DA ÉPOCA
DA DITADURA FRENTE AO FLORESCER POP DOS ANOS 1980
Através dos movimentos, dança do Pró-Posição resgata lembranças
da mãe sobre anos de chumbo pelo olhar historiográfico da filha
Em setembro, o grupo Pró-Posição apresenta em São Paulo o espetáculo Vis-à-Vis dentro da programação do evento Encontros da Dança, no Tucarena, no dia 4, 20h, e na Funarte (sala Renée Gumiel) entre os dias 6 e 9 (quinta a sábado, 19h; e domingo, 18h). Mais adiante, no dia 22, vai estar em São Bernardo do Campo, na região metropolitana, no teatro Abílio Pereira Almeida (20h).
Com recursos do teatro e da música, a acordeonista Janice Vieira e a atriz Andréia Nhur (mãe e filha) acertam as contas entre o engajamento artístico dos anos 1960/70 e o movimento radical chic, enquanto dançam. Em sua terceira parceria na concepção e interpretação, histórias viram gestos, palavras e sons.
Em 2008, as duas “reativaram” o grupo fundado em 1973 por Janice. O uso do nome é uma forma de rememorar o que há pouco foi dito (ou dançado). O espetáculo é híbrido e mais próximo das propostas do Pró-Posição naquela época, por suas escolhas estéticas. “A dança atual está opaca e busca fugir da tirania dos significados, da representação, das mensagens, optando por uma plástica do quase nada”, diz Janice Vieira.
A dança daqueles tempos no Brasil — que era marcada pela ditadura militar e também pelos ecos de mudança no mundo todo – vem à cena pelo testemunho da mãe, que recorda, e pelo olhar historiográfico da filha, que investiga o passado.
Nos primeiros momentos, uma blusa de mangas muito compridas, similar a uma camisa de força usada por Janice no espetáculo Boiação (1976), como símbolo da repressão da época, volta à cena. Une as intérpretes num duo; depois serve como um prolongamento dos braços da mãe, num solo.
Roberto Gill Camargo, que é colaborador artístico e pai de Andréia, criou o desenho de luz. Não há cor, apenas um azul vindo de trás rebate o branco das cenas, usado para sugerir a ideia de que presente e passado são continuações e não instantes representados por oposições cromáticas.
“Não é um branco difuso, sem vida, mas com variações de ângulo, direção, amplitude e intensidade. A intenção foi criar uma luz integrada a um discurso cênico que contrapõe, justapõe e estabelece correspondências entre presente e passado. Não queria representar o passado com a luz, (num tom sépia e envelhecido) mas sim trazê-lo, como se estivesse acontecendo agora”, explica Roberto Gill Camargo.
Frente a frente
O espetáculo conta também com a colaboração de Isabelle Launay, pesquisadora francesa da história da dança do século XX. Ao ver as indagações que surgiam na parceria entre Janice e Andréia, ela sugeriu o nome Vis-à-Vis – expressão francesa que significa frente a frente.
“Isabelle viveu no Brasil quando criança e seus pais eram de esquerda. Uma questão comum nos atravessa: ‘o que nos deixaram as gerações dos anos 1960 e 70’. Na última cena, em que interpreto Summertime (de George Gershwin), considerada um hino naquele período, nos EUA, esta pergunta parece vaguear em torno de nós”, diz Andréia Nhur.
A criação começou à distância, com troca de cartas – dois trechos da correspondência entre mãe e filha compõem a dramaturgia. Em 2011, em Paris, Andréia teve as primeiras conversas com Isabelle, estudiosa de coreógrafos que compõem com memórias corpos-depoimentos. No meio do processo, Janice foi para lá e começaram a pesquisar cenas, objetos e signos, como a caixinha de música de manivela com o Hino Internacional Comunista (de Eugene Pottier e Pierre Degeyter).
No palco, caminhos contrários. O que antes fazia sentido para a mãe - pensar a arte como protesto, não é mais preciso; já para a filha se reportar àquele tempo, ela tem de imaginar como seria fazer dança política.
Outro exemplo das diferenças entre as duas gerações se expressa através do resgate das memórias da infância. Andréia lembra o Michael Jackson, enquanto Janice dança o baião. “Tudo que apresentamos resulta da história de nossos corpos e está atravessada pela coletividade. As nossas vivências conversam com as de outras pessoas que dançaram as mesmas coisas”, fala Andréia.
Além de uma citação de Billie Jean (faixa de Thriller, de Jackson) sobreposta ao Baião, ruídos de alerta e canções com tom revolucionário, como as Czardas (Vittorio Monti), compõem a trilha. Responsável pela criação musical, Janice também toca ao vivo, em alguns momentos, num pequeno acordeom. No repertório, uma composição própria, Valsa Maia (1999).
A pré-estreia do duo foi em junho, na III Plataforma Estado da Dança, no teatro Sérgio Cardoso, na capital.
Duração: 45 minutos Recomendação etária: livre
PARA ROTEIRO – VIS-À-VIS.
Tucarena. Dia 4, 20h. Rua Monte, Alegre, 1.024. Tel. 3670-8455; site www.teatrotuca.com.br. 300 lugares. Grátis. Acessibilidade para portadores de deficiência física. Estacionamento conveniado Riti (hotel Transamérica), rua Monte Alegre, 835, R$ 15, tel. 3167-7111.
Funarte. Dias 6 a 9/9; 5ª a sábado, 19h; domingo 18h. Alameda Nothmann, 1058, Campos Elíseos. Tel. 3662-5177. Sala Renée Gumiel. 70 lugares. Ingresso R$ 10 e R$ 5 (estudantes e aposentados). Horário de funcionamento da bilheteria: uma hora antes da apresentação. Acessibilidade para portadores de deficiência física.
Teatro Abílio Pereira Almeida. Dia 22/9, 20h. Praça Cônego Lázaro Equini, 240. Tel. 4125-0582. Grátis
Ficha técnica
Criação e interpretação Andréia Nhur e Janice Vieira
Criação musical Janice Vieira
Colaboração Isabelle Launay
Iluminação Roberto Gill Camargo
Produção Dudu Oliveira
Assessoria de imprensa Lu Cassas & Lica Nielsen
Fotos Inês Correa
Apoio Governo do Estado de São Paulo, Secretaria de Estado da Cultura - Programa de Ação Cultural – 2011
Breves perfis
Janice Vieira – criação, interpretação e direção musical
Bailarina, coreógrafa e acordeonista. Nos anos 1970, quando a divisão entre direita e esquerda era clara, ou se era engajado politicamente e contra o regime ou alienado e submisso, criava uma arte crítica e experimental: a dança-teatro, ao mesmo tempo em que Pina Bausch fazia, na Europa. Em algumas cenas do Vis-à-Vis, reporta-se àquela época e à veemência com que dançavam. “Nós íamos carregados de indignação para o palco. Não pegávamos em armas, mas, em certa medida, fazíamos da arte nossa militância. Essa lembrança, agora, é muito viva e faz pensar”. Estudou com Maria Olenewa (aluna de Anna Pavlova), considerada uma das responsáveis pela introdução do balé clássico no Brasil, e Maria Duschenes (discípula de Rudolph Laban), por mais de dez anos. Aos 69 anos, além do Pró-Posição, compõe e executa a trilha sonora para o Grupo Katharsis e colabora com o Coletivo KD.
Andréia Nhur – criação e interpretação
Em 2006, iniciou a pesquisa solo Swan - Corpo Adaptado, que resultou na parceria com sua mãe, Janice Vieira, retomando o Pró-Posição. Apresentada em 2007, a coreografia em que fala de heranças e da mãe bailarina é a primeira parte da Trilogia do Cisne composta por O Cisne, Minha Mãe e Eu, dueto em que coloca Janice em cena (2008), e finalizada por LinhaGens. Com interesse particular nas técnicas de mímica, trabalha desde 1999 como atriz e preparadora corporal no Katharsis (Astros, Patas e Bananas, peça encenada em São Paulo, em 2010 e em 2011). Graduada em Dança pela Unicamp, se dedica a doutorado sobre história da dança; fez estágio doutoral, com bolsa Capes-PDEE, na Université de Paris 8, e estágio de teatro na École de Théâtre de Jacques Lecoq, no ano passado.
Criado em 1973 por Janice Vieira e Denilto Gomes (1953-1994), em Sorocaba; desde aquela época misturava linguagens como a do teatro, da dança, da música e o audiovisual. Participante ativo do Teatro Galpão e da Oficina Nacional de Dança Contemporânea da Bahia, suas produções eram engajadas, afinadas com a contracultura. As escolhas estéticas tinham tom de protesto e libertação. No próprio nome, assumia uma posição assertiva, contra a ditadura militar. Digeria em cenas o que era iminente e aparente naquele momento: os movimentos da contracultura, a liberação de comportamento, o entusiasmo com o socialismo e a oposição à repressão do governo. A partir de 1983, passa a criar mais espaçadamente. Em 2008, O Cisne, Minha Mãe e Eu, dueto de Janice com a filha Andréia Nhur, representa uma nova emergência. Em 2010, encena LinhaGens, uma demonstração do legado em dança-teatro, com poesia e humor.
Roberto Gill Camargo – desenho de luz e colaboração artística
Recebeu quatro prêmios Governador do Estado por iluminação e sonoplastia, além de prêmios de direção e iluminação em festivais como o de São José do Rio Preto. Publicou dois livros sobre iluminação: Função Estética da Luz (SP, 2000) e Conceito de Iluminação Cênica (RJ, 2012). Entre os mais de seus 30 textos encenados estão: Hello, Boy!, com Elias Andreato e Ester Góes (SP), traduzido para o italiano e apresentado em Florença; Servos da Gleba, com Eliane Giardini; e Fio Terra, com Carolina Ferraz. É diretor do Katharsis (criado pela Universidade de Sorocaba no início dos anos 1990). Com 14 montagens, a linha de pesquisa do grupo prioriza a estética. É professor titular de iluminação cênica na graduação em teatro e de luminotécnica no curso de design de interiores, na Universidade de Sorocaba. Foi por quatro anos professor-convidado de Lighting Design na Esmae, em Portugal, e atualmente leciona no Ipog, Instituto de Pós-Graduação em Iluminação, de Brasília.
Isabelle Launay – colaboração artística
Professora da Universidade Paris 8, em Saint-Denis, hoje um dos mais importantes segmentos do estudo sobre memória da dança, pesquisa a história da dança do século XX, especialmente da França e da Alemanha, e é autora de livros sobre o tema. É membro da Association des Chercheurs en Danse e membro fundador da Faculdade de Educação Centro Nacional de Dança Contemporânea de Angers (2002-2006), onde ensina regularmente. Colaborou com processos artísticos de criadores como Boris Charmatz e Latifa Laâbissi. Agora, na segunda quinzena de agosto, trabalha intensamente com o Pró-Posição, na sede do grupo em Sorocaba, para aprofundar o processo de colaboração artística do Vis-à-Vis.